O PATRIMONIO HISTÓRICO:
RELAÇÕES SUBTERRÂNEAS ENTRE PATRIMÔNIO E PROGRESSO
Henrique Pereira Lima
Em uma sociedade sustentada por imagens, onde os objetos têm uma alta natalidade e mortalidade, como a sociedade humana contemporânea, qual é o lugar do conhecimento, das tecnologias e daqueles que as dominam, quando estas, em tempo cada vez mais curto são superadas? Aí esta uma questão que provavelmente, se respondida de forma unilateral e singular, causa à sociedade maior prejuízo do que benefício.
A alta mortalidade do patrimônio tecnológico acompanha necessidades econômicas bastante precisas – necessidades mais econômicas do que humanas. Acompanha da mesma forma, uma forte imagem, enraizada no imaginário humano onde o passado é visto como superado e decrépito e o moderno, como o ícone redentor da humanidade. Assim foi retratada a monarquia brasileira pelo regime republicano e a República Velha pela Era Vargas e seguintes (para citar apenas dois exemplos da política nacional). Em comum, estes fenômenos encetam a tendência dos contemporâneos em negar e condenar os seus antecessores.
Quando este imaginário é redimensionado para as relações entre o eu individual com um objeto, prédio ou acervo museológico (entre outros) – pois o imaginário esta presente em todos os aspectos da vida humana em sociedade (até nos julgamentos individuais do subconsciente), não raramente há a condenação ou mais frequentemente, o desinteresse por este acervo. Apesar de ser uma “força social” abstrata, o imaginário social de uma sociedade, quando hegemônico, consolida, conforme Trindade e Laplantine (2000, p. 79), “(...) uma maneira específica de perceber o mundo (...)”, de modo que, segundo Paiva (2006, p. 26):
O imaginário não é como se poderia pensar, um mundo à parte da realidade histórica, uma espécie de nuvens carregadas de imagens e de representações que pairam sobre nossas cabeças, mas que não fazem parte de nosso mundo e de nossas vidas. Ao contrário, esse campo icônico e figurativo influencia, diretamente, nossos julgamentos.
Esta estrutura colabora para que, determinadas formas de percepção e relação do eu com o mundo social (histórico, cultural, econômico, político, etc.) sejam perpetuadas na construção de significados atribuídos a todas as formas de manifestação cultural. Há, portanto, no momento do estabelecimento da relação entre a consciência humana e um objeto a interferência do que Trindade e Laplantine (2000, p. 25) chamam de “[...] realidade exterior percebida [...]”, que colaboração com a construção de significados do objeto. Em outras palavras, o objeto não é apenas um objeto, mas uma representação de algo evocado pelo objeto.
Ao ponderarmos a ideia predominante sobre o progresso na sociedade capitalista contemporânea, pode-se sugerir que a fé quase cega do mundo ocidental à época da Idade Moderna, mesmo que tenha declinado com as Guerras Mundiais, não foi abandonado. Para Dupas (2006, p. 56, 57):
Sintomas de descrença do ambiente intelectual em torno da ideia de progresso já haviam aparecido durante o século XIX (...). É certo que houve motivos para tanto, notadamente em razão das duas guerras mundiais, tão atreladas à ideia de progresso. (...).
O desencadeamento dos conflitos mundiais (Primeira e Segunda Guerra Mundial), como é exposto, puseram sob suspeita a ideia de progresso como a redenção da sociedade humana, pois foi justamente o progresso técnico e cientifico que permitiu que a morte, destruição alcançasse uma escala nunca vista pela espécie humana. Segundo Doberstein (1995, p. 79, 80) “com a eclosão da I Guerra Mundial (1914-18) e todos os horrores que se seguiram, desapareceu no mundo ocidental aquela confiança depositada nos destinos da humanidade”, condição que a Segunda Guerra, apenas agravou. A ideia de que o progresso acumulado levaria a humanidade a um novo tempo, balançou. Em outras palavras: o desenvolvimento científico e econômico, puro e simples, que sustentava a noção de progresso, perdia fôlego e confiança.
Entretanto, a sociedade de consumo reabilitou o mito do progresso, conforme Dupas (2006, p. 22) como “(...) uma idéia-força que se confunde com um discurso hegemônico encastelado no anseio universal de uma marcha para a utopia”, (Grifo do autor) que mesmo destituída de unidade conceitual, orienta a sociedade contemporânea, sensivelmente. Este é, nas palavras de Dupas (2006, p. 290) “[...] um mito renovado por um aparato ideológico interessado em nos convencer que a história tem um destino certo – e glorioso – [...].”.
Como um reflexo, a cultura, a arte e os objetos a elas vinculados, podem ser percebidos apenas como produtos a serem consumidos e, nessa perspectiva. Destituídos de sua representatividade, significados e de capital simbólico, estes objetos são definidos em uma escala de valor onde os mais recentes, seriam melhores que os seus predecessores. Nesta condição - de produto, apenas - os objetos não exploram sua potencial capacidade dialógica com os indivíduos, deixando, dessa forma de expressarem um sentido e exercer a função de capital simbólico.
Perde-se, assim, a história, a memória e identidade cultural local, da qual o patrimônio cultural local é portador. Perdem-se os referencias que dão forma e sentido a sociedade e que são expressos pelos objetos. Perde-se técnicas, conhecimentos e inclusive, as pessoas que as dominaram ou dominam. Perde-se o respeito pelo patrimônio e pela própria existência humana, que, de detentor de um conhecimento e técnica que guiou e garantiu a sobrevivência da sociedade humana, passa a ser o resto de um tempo que não existe mais. E, a comunidade, não sabendo com clareza sua história, sua memória social e a sua identidade (estar no mundo) qualquer direção, qualquer líder e qualquer projeto, serão acatados.
Bibliografia:
DOBERSTEIN, Arnoldo. Escalada, Caringi e o gauchismo na estatuária. In: CLEMENTE, Elvo (org.). Integração: Artes, Letras e História. – Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995.
DUPAS, Gilberto. O mito do progresso; ou o progresso como ideologia. – São Paulo: Editora UNESP, 2006.
PAIVA, Eduardo França. História e imagens. – Belo Horizonte: Autêntica 2006.
TRINDADE, Liana Sálvia; LAPLANTINE, François. O que é imaginário. São Paulo: Brasiliense, 1997.