A “Grande Palmeira” das Missões:
Origem, História, e Tradição, na seiva do chimarrão.
Henrique Pereira Lima
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Quando voltamos nosso olhar para os tempos idos, buscando contemplar a época de nossos antepassados, e contemplar as eras mais remotas de nossa história, não procuramos simplesmente, encontrar o nosso passado, ou o passado do Rio Grande do Sul. Procuramos sim, localizar a nossa origem. Procuramos perceber as raízes de nossas tradições ancestrais, e o tronco do qual, hoje, brotam os emblemas de uma identidade e de um modo de ver o mundo e de ser, palmeirense.
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E, quando esta origem e atingida, suas imagens são repontadas para o tempo presente. E entre estas imagens de cores fortes, de revoluções e lutas, de matas e campos, as folhas da erva-mate surgem de modo constante, apontando a Ilex Paraguaiensis como elemento central desta história. E, o chimarrão, surge como um coração vibrante, cuja seiva que em tempos de antanho alimentou todo o processo de colonização local, e hoje identifica seu povo. É na roda de mate, igualitária em sua organização e no calor e no topete audacioso do amargo que, hoje, percebe-se a essência deste pedacinho do Rio Grande do Sul.
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A erva-mate, na região de Palmeira das Missões, foi no passado e, ainda é conhecida como o “ouro verde das coxilhas”. Foi atrás desta riqueza nativa do Médio-Alto-Uruguai que os missioneiros do século XVIII embrenharam-se nas matas e, incluíram esta região em seus mapas. Conforme Porto, apud AEPLAM (1954) “[...] Palmeira, [foi] o mais notável celeiro da erva rio-grandense”, foi mencionado na carta Anua do Padre Pedro Romero, S. J., datada de 1633”.
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A infusão das folhas de erva-mate, que inicialmente preocupou os missionários de Jesus, em pouco tempo teve seu valor reconhecido. Com propriedades energéticas, o mate “chimarrão”, foi paulatinamente integrado a cultura de toda a América do Sul, convertendo-se, em um importante produto econômico, conectando a região à colonização americana, e mais tarde, das nações independentes. E, desde época, a erva-mate e o chimarrão, foram definindo seus contornos simbólicos: de riqueza econômica, definiu-se um forte teor simbólico, que hoje é um emblema, em todo o Rio Grande do Sul, de hospitalidade e amizade.
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Cronologicamente, temos que o comércio missioneiro de erva-mate do século XVII e XVIII alimentou-se também dos ervais do que viria ser a grande Palmeira. Como apontam os mapas jesuíticos, em especial o de Guilherme Furlong (FURLONG, G. Cartografia Jesuítica del Rio de la Plata. Buenos Aires: Jacobo Peuser, 1936), o território de Palmeira das Missões situava-se na região dos ervais das Missões Jesuíticas de Santo Ângelo Custódio, São Luiz Gonzaga e São João Batista.
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A erva-mate foi, por essa e outras razões o motivo de fixação dos primeiros moradores da Região da “Grande Palmeira”, região que hoje corresponde a dezenas de município filhos, netos e bisnetos de Palmeira, mesmo tendo que enfrentar entre outros perigos, os nativos, nem sempre amistosos. Estes pioneiros embrenhavam-se nas matas, em busca, segundo Zarth (1997, p. 25), da “[...] erva-mate, pequena árvore de grande importância econômica [...]”.
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Até 1933 Palmeira das Missões era a sede de um imenso território, denominado “Grande Palmeira” localizada, conforme Ardenghi (2003, p. 18) “no Planalto rio-grandense”. Segundo o estimado historiador local, Mozart Pereira Soares (2004, p.134), este território era limitado “ao norte – com o Estado do Paraná; a leste – com o município de Passo Fundo; ao sul – com o município de Cruz Alta; ao oeste – com o município de Santo Ângelo e República Argentina.”. Neste espaço, organiza-se uma comunidade que com o tempo, dá forma a um território cultural, onde, segundo Reichele Gutfreind (1996, p. 13) “as vivências, as ideias, os sentimentos que os homens desenvolvem [...] compõe [...] a cultura de uma região”. Deste modo, conforme a AEPLAM (2016, p. 3) “Palmeira das Missões figurou na estatística da produção ervateira como ‘Capital do Mate no Rio Grande do Sul’. E não só em quantidade, o que se explicaria pela grande extensão territorial do município, que deste sua criação (1874) até o ano de 1933 foi o territorialmente maior do Estado. A fama de ‘Erva Boa da Palmeira’ foi algo incontestável que se incorporou às tradições do Rio Grande.”. Esta história, embora escrita por várias mãos, possui como maior ponto de convergência capaz de acolher a todos a erva-mate.
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Desde então, a ocupação das matas, até o século XX, só cresceu, dando origem a dezenas de novos municípios que, assim como Palmeira das Missões, serão “filhos da erva-mate”.
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Imagem: Placa explicativa do “Obelisco do Centenário (1874 – 1974)”. (2014).
Fonte: Namar Garcia Franco.
Foi no manejo do fação e no calor dos carijos, que se temperou o ânimo destes gaúchos. Um fato histórico que deve ser registrado é que, ao lado dos oficiais que pelearam nos séculos XIX (1893) e XX, (1902, 1923, 1932) pelo Rio Grande do Sul e pelo Brasil, estavam também, os soldados que, frequentemente eram recrutados entre os caboclos e ervateiros do interior da Grande Palmeira. Foi nestas peleias sangrentas que a “Grande Palmeira” e sua gente ficou conhecida e, teve reconhecida, sua coragem.
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Nestes episódios, os caboclos e ervateiros de mãos calejadas pelo facão no corte da erva, sapeco e rondas de carijo, se mostraram bravos, e assim foram reconhecidos, devido a valentia com que lutavam – de facão, contra metralhadoras. Assim, a Ilex Paraguaensis deu forma a uma identidade, temperando o caráter de uma comunidade, com coragem, empenho e dedicação.
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Nesse sentido, foram muito importantes os homens simples que ocuparam as matas da região, que era segundo Zarth (1997, p. 47) denominados como “‘lavrador nacional’ [...] [sendo] possível ainda encontrar a designação de ervateiro nas regiões dos ervais do sul do país.”. São estes ervateiros, também denominados como caboclos que, conforme Ardenghi (2003, p. 68) eram “moradores das áreas rurais, dedicados ao extrativismo ou ao cultivo de pequenas lavouras (...)” que criam a linha do desenvolvimento local.
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Em muitos sentidos, a erva-mate é o centro da formação histórica e social de Palmeira das Missões e dos municípios da região convertendo-se, nesse contexto, em um ponto de convergência histórica, cultural, social e econômica de toda a região da “Grande Palmeira”. Sua histórica cadeia produtiva consiste em um ciclo econômico que atravessa todos os demais. São na erva-mate, no chimarrão e na história com eles escrita no solo rio-grandense e brasileiro, pelos pioneiros ervateiros, que a região se reconhece e que a orgulha.
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Em torno da erva-mate, e do seu manejo, na colheita e nos carijós anuais que Palmeira das Missões principia sua história, ainda no século XVIII. Nesse sentido, sabe-se que:
O primeiro núcleo urbano [de Palmeira das Missões] consta de 1724, sendo que em 1821, foi denominado Vilinha, nome este atribuído pelos extratores de erva-mate, o município ainda teve outras denominações, quais sejam, Vilinha do Herval, Vilinha da Palmeira, Santo Antônio da Palmeira e finalmente Palmeira das Missões. (PREFEITURA MUNICIPAL DE Palmeira das Missões, 2014).
Por essa época, os ranchos de capim dos cabocos e ervateiros ocupavam uma vasta região – de matas e de perigos. Conforme registra o imaginário regional, estes eram homens de vida simples, austera. Conforme Rückert (1997, p. 81) o caboclo era um “[...] peregrino, extraindo erva-mate nos ervais públicos para a venda a particulares e a comerciantes.” Viviam como podiam com pequenos roçados e, sobretudo da erva-mate que beneficiavam nas matas, em tornos dos carijós – giraus de varas toscas que, sobre o fogo, secavam as folhas já sapecadas. Esta atividade durava em torno de três ou quatro dias durante os quais, sobretudo à noite, se promoviam tertúlias para animar as noites de vigília que buscavam evitar que os ramos já secos prendessem fogo. Esta forte ligação da região com a erva-mate é percebida também por Soares (2004, p. 316) que afirma que:
[...] Palmeira das Missões [...] é filha da erva-mate. Ela começou no início do século XIX, como ‘Vilinha do Erval’, um rancheiro de capim [...] em que as caravanas vindas de Cruz Alta se abasteciam do ‘ouro verde das matas’, a primeira riqueza que os povoadores aqui exploraram.
Esta atividade secular não conheceu, em tempo algum, declínio em seu sentido cultural. Pelo contrário: mesmo em épocas de baixa na produção, o sentido da vivência real e cultural dos caboclos e ervateiros preservou-se. O ponto de encontro e de reunião destes ervateiros, ainda no século XVIII, segundo as imagens lendárias da história regional, uma coxilha muito alta, que se tornava visível ao longe, graças a uma palmeira solitária sob a qual, descansavam viajantes e realizavam-se as vendas de erva-mate que deste ponto, embarcavam em carretas para todo o Rio Grande.
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Esta coxilha, hoje tem em seu centro, marcando a existência daquela palmeira e, sinalizando o ponto de origem da história desta região, o “Obelisco do Centenário”. Foi deste ponto que emanaram as forças que deram forma e identidade a cultura da região da “Grande Palmeira”. Em torno deste espaço, organizou-se a Vilinha do Erval, com sua intendência, e sua “Capelinha do Rosário”. Foi a partir deste “marco zero” que o Rio Grande do Sul viu mais uma comuna nascer, tendo a erva-mate nativa, como mãe zelosa.
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Imagem: “Obelisco do Centenário” (1874 – 1974). (2014).
Fonte: Namar Garcia Franco.
A atividade ervateira nas matas do Planalto Rio-Grandense, nunca cessou. Se modificou com o tempo, mas nunca deixou de ter seu conhecimento e seus mistérios transmitidos entre as gerações. Ainda são claros os vestígios do seu modo de vida, seu conhecimento e seus comportamentos. E, hoje, muito deste patrimônio nos chega vivo, nas memórias acumuladas e cantadas no festival de música nativista denominado “Carijo da Canção Gaúcha”. Neste festival, anualmente, o passado se faz presente e, os ervateiros de antanho, veem, mais uma vez, o brilho do luar nas noites de ronda carijeira que são essência deste “Patrimônio Cultural do Rio Grande do Sul”.
O festival “Carijo da Canção Gaúcha”, de Palmeira das Missões, resgata o passado ervateiro da “Grande Palmeira”, e dos homens e mulheres que fizeram sua história. Todos os anos, a comunidade regional se integra a essa promessa – nunca quebrada – de culto à memoria dos pioneiros, e do seu esforço que transformava o “ouro-verde”, em “amargo-doce”, essência de todo o Rio Grande do Sul.
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As rondas do “Carijo da Canção Gaúcha” preservam o calor do brasido que nunca apagou na alma do povo da “Grande Palmeira”, calor este que, todos os anos reavivado, garante a preservação de sua manifestação cultural mais cara: o trabalho primitivo com a erva-mate.
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Imagem: Capa do livreto da Programação do 3º Carijo da Canção Gaúcha
Fonte: Secretaria Municipal de Cultura e Turismo de Palmeira das Missões.
Além da erva-mate, e do chimarrão, durante este festival, é rememorada a valentia e coragem daqueles homens rudes das matas. Sua memoria é revivida através de versos e notas, mas principalmente, no “Troféu Pé-no-Chão” (primeiro lugar). Este troféu faz referência aos homens recrutados em meio as matas e ervais da região, pela Brigada Militar, para as lutas em São Paulo, contra a Revolução Paulista (Revolução Constitucionalista de 1932). Nesta Revolução, bem como nas demais que abalaram o Rio Grande do Sul, os caboclos das matas, habituados às lides de facão e aos riscos de ataques de nativos nas matas, constituíram presença constante.
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No episódio de 1932, os bravos voluntários foram organizados em um Batalhão. Nascia nesse momento, o 3º Batalhão Provisório da Brigada Militar, sediado em Palmeira das Missões, que entraria para a História Nacional como o “Pé-no-Chão”.
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Vestidos e armados pela Brigada Militar, o 3º Batalhão Provisório, entretanto, não se adaptou nem às armas de fogo, nem às botinas do uniforme. Por isso, se celebrizaram ao preferirem a luta de arma branca e descalços – levando as botinas amarradas à cintura. Estes voluntários eram originários das matas, que ainda dominavam a região da “Grande Palmeira” em 1932. Conforme o Jornal O NACIONAL (1932, p. 1):
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Os meios militares desta capital [RJ] estão destacando muito a ação do 3º Corpo Auxiliar da Brigada Militar [...] comandada pelo tenente-coronel Serafim de Moura Assis, de Palmeira [...] [que] agindo com grande valentia, agindo contra cercas de arame farpado protegidas por metralhadoras, tomando-as a arma branca [...].
Estes eram homens simples, que não conheciam nada além de seu ofício: cortar erva com facão. Por isso, preferiam lutar descalços, e de facão, já que pouco conhecimento, tinham de armas de fogo. E, estando com os pés descalços, foram pelos paulistas, apelidados, de “Pé no Chão”.
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Foi dessa forma impetuosa que a imagem de uma Palmeira das Missões em 1932, se inseriu no contexto da História Nacional. Neste esforço, a Revolução Paulista de 1932 foi debelada e o gaúcho Getúlio Vargas, Presidente do Brasil à época, pode dar continuidade ao seu governo. A lembrança destes bravos combatentes hoje é representada em Palmeira das Missões, por um monumento, em frente à Prefeitura Municipal e no troféu do “Carijo da Canção Gaúcha”.
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Imagem: Premiação parcial do Carijo da Canção Gaúcha.
Fonte: Livro do 28º Carijo da Canção Gaúcha.
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A preservação deste passado (que ainda pode ser contemplado na colheita, nos “soques de erva mate” tradicionais, ou no bater das mãos dos pilões ancestrais), não se notabilizou sem o esforço daqueles ervateiros do passado. Hoje, o trabalho árduo, daqueles ervateiros e suas famílias são relembrados ritualisticamente, em canções e versos, em rondas de Carijo, todos os anos, porque se impuseram pela coragem que demonstraram quando precisaram lutar, pelo Rio Grande e pelo Brasil.
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Imagem: Monumento ao “Pé no Chão” (2014).
Fonte: Henrique Pereira Lima
Quando Soares (2004, p. 316) enceta que o Carijo da Canção Gaúcha é uma “[...] espécie de regresso às origens [...] uma redescoberta das fontes de nossos mais genuínos valores espirituais, que devemos manter e aprimorar [...]” deixa clara a forte ligação histórica desta região em especial Palmeira das Missões, com o calor dos carijos que forjaram os valores de toda esta comunidade. Àqueles guerreiros, entre ervais e metralhadoras, em diferentes momentos deram mostras de uma valentia única. E, com o mesmo ímpeto que enfrentaram as matas fechadas em busca da erva-mate, se entregaram na guerra em 1932. E o “Carijo”, hoje, rememora esta história e seus autores anônimos e colabora, conforme Soares (2004, p. 316) com “[...] o progresso cultural do grande Todo que é a Nação.”.
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Ervateiros, Erva-mate e chimarrão. Estes são os elementos que dão forma e sentido às tradições de Palmeira das Missões e da histórica “Grande Palmeira”.
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Origem, História e Tradição: em Palmeira das Missões, essa essência, pode ser vista, anualmente, no “Carijo da Canção”, em versos que fazem Palmeira, o Rio Grande e o Brasil, grandes. É o tributo de um filho, à razão de sua existência.
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Obrigado erva-mate.
Referências Bibliográficas:
ARDENGHI, Lurdes Grolli. Caboclos, Ervateiros e Coronéis: luta e resistência no norte do Rio Grande do Sul. Passo Fundo: UPF, 2003.
Associação dos Ervateiros Polo Planalto Missões – AEPLAM. Fortalecimento da Cadeia Produtiva da Erva-Mate, através da cultura e Turismo no Município de Palmeira das Missões.
FURLONG, G.. Cartografia Jesuítica del Rio de la Plata. Buenos Aires: Jacobo Peuser, 1936.
O NACIONAL. Diário Independente.Do Paiz: acção de um corpo provisório em S. Paulo. Passo Fundo, 29 de agosto de 1932.
PORTO, Aurélio. História das Missões Orientais. Selbach, Porto Alegre, 1954. Apud Associação dos Ervateiros Polo Planalto Missões – AEPLAM. Fortalecimento da Cadeia Produtiva da Erva-Mate, através da cultura e Turismo no Município de Palmeira das Missões.
PREFEITURA MUNICIPAL DE PALMEIRA DAS MISSÕES. História. Disponível em:< http://www.palmeiradasmissoes-rs.com.br/index.php?option=com_content&tas k=view&id=10&Itemid=13>. Acesso em 25 de março de 2014.
REICHEL, Heloisa Jochims; GUTFRIEND, Ieda. As Raízes Históricas do Mercosul. São Leopoldo; Ed. UNISSINOS, 1996.
RÜCKERT, Aldomar A. A trajetória da terra: ocupação e colonização do centro-norte do Rio Grande do Sul. Passo Fundo: Ediupf, 1997.
SECRETARIA MUNICIPAL de Cultura e Turismo de Palmeira das Missões. Capa da Programação do 3º Carijo da Canção Gaúcha. Palmeira das Missões, 1988.
SOARES, Mozart Pereira. Santo Antônio da Palmeira: apontamentos para a história de Palmeira das Missões, comemorativos do primeiro Centenário de sua emancipação política. 2ª ed. Porto Alegre: AGE, 2004.
ZARTH, Paulo Afonso. História agrária do planalto gaúcho 1850 – 1920. Ijuí: Ed. UNIJUÍ, 1997.