O ESPAÇO LOCAL:
OBJETO EM CONSTRUÇÃO
Henrique Pereira Lima
Imagem: Mapa Palmeira das Missões: Tratamento Artístico.
Fonte: IBGE
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História local: possibilidades
As ciências humanas correspondem a uma ampla e diversa área do conhecimento. O seu objeto – o ser humano – é observado através de diferentes perspectivas: temporais, especiais, culturais, etc. Este vasto domínio exige, portanto, metodologias diversas, para que possamos compreender as múltiplas formas pelas quais as sociedades constroem sua forma de “estar no mundo” e com ele se relacionam. As ciências humanas oferecem diversas ferramentas para que possamos compreender as versões de realidade socialmente organizadas, e as referências que os indivíduos e as comunidades utilizam para definir sua identidade e a dos outros.
Até meados do século XX, ciências como a História e a Geografia possuíam um caráter sobretudo descritivo. Era suficiente descrever e nominar os acidentes geográficos, por exemplo. Ou então, citar datas e personalidades envolvidas em determinados fatos históricos considerados importantes. De certo modo, o conhecimento correspondia a uma espécie de coleção de informações, geralmente descontextualizadas. Hoje esse caráter descritivo não é suficiente.
Hoje, os paradigmas das Ciências Humanas apresentam outra fundamentação. A História Nova e a Geografia Crítica procuram ir além do superficial e do senso comum, tanto no que se refere à humanidade no tempo e no espaço. Novos temas passam a ser reconhecidos e visitados; novos personagens passam a ser vistos e ouvidos, novas fontes passam a ser consideradas. As fronteiras destas ciências se ampliam, permitindo a expansão dos domínios das Ciências Humanas e aprofundando nossa compreensão sobre nós mesmos.
Ao tratar do ser humano e da sociedade humana, a Geografia e a História dão as mãos. Quando estudamos uma região, por exemplo, fazemos um recorte do espaço, uma vez que “não é possível estudar formação social e econômica sem estudar o espaço e as suas particularidades” (SANTOS,1982). Mas, se buscamos compreender o objeto, não basta descrevê-lo. É preciso compreender as forças que sobe o objeto agiram e agem e os sujeitos históricos que o ocupam. Enfim, é preciso compreender que além do espaço, as ações, acontecimentos e transformações ocorrem também no tempo. O espaço, portanto, também pode ser tomado como uma dimensão dotada de temporalidade.
A compreensão de que o aspecto físico pode ser abordado também através de uma perspectiva histórica é relativamente recente. Esta concepção que concebe o espaço dotado de historicidade tem seu marco na segunda metade do século XX, quando a “região” veio a se tornar pertinente junto das “novas concepções históricas, a partir da década de 1970 do século XX, impulsionada pelo movimento dos Annales, [que] favoreceram a expansão dos estudos regionais e, em consequência, a tentativa de explicitação de região” (ARDENGHI, 2003, p. 45).
Esta nova percepção multiplicou as possibilidades de abordagem do tempo e do espaço e, de sua interação mútua. A história passa a ser considerada através de diferentes durações: processos de longa e curta duração; ou os desdobramentos de um fato que, observado com profundidade, evidencia o contexto de uma época. O espaço de mesmo modo, também tem sua abordagem alterada: torna-se pertinente observar os processos que ocorrem de forma geral e aqueles que têm sua dinâmica inserida em espaços restritos, uma espécie de “espaço local”, como forma de evidenciar as circunstâncias que não são reveladas pelas abordagens globais. Por isso, pode-se afirmar: o encontro da Geografia e da História evidencia que o espaço “[...] local é histórico e continua sendo mesmo em época de globalização.” (CORREA, 2002, p. 28).
Hoje, as macro-abordagens ainda são utilizadas. Versões totalizantes que buscam apresentar toda a história de uma comunidade, ou toda a dinâmica de um espaço. Mas, ao seu lado, ganha espaço e importância as perspectivas históricas que se detém em processos históricos locais, em espaços restritos, através da História Local, que “é uma escala de análise que permite que tenhamos próximos de nós todos aqueles elementos que expressam as condições sociais, econômicas, políticas de nosso mundo” (CALLAI,1988, p. 11). Estas pesquisas e abordagens entre outros fatores se destacam pelo desejo das comunidades de compreenderem suas próprias feições, históricas e culturais. Como aponta Bigoto (2017, p. 156) “o estudo da História Regional e Local para um país gigantesco como o Brasil não é importante apenas para o fornecimento de dados para o IBGE calcular médias nacionais e sim resgatar a identidade regional de seu povo [...]”.
A abordagem do espaço regional, é claro, não pode ser absoluta. O espaço local e a história local mantêm relações com histórias e espacialidade maiores. Há trocas, há influências e intercâmbios, em ambas as direções. “[...] Os modos de vida de um povo não ficam imutáveis e não se restringem de forma extremamente fixa a determinado local [...]” (SIQUEIRA, 2019). Esta abordagem ganha importância à medida que esclarece o processo pelo qual as identidades locais são construídas.
Em outras palavras: é através da história de uma região que se compreende a identidade sociocultural de sua comunidade. “[...] A história local se caracteriza pela valorização dos particulares, das diversidades; ela é um ponto de partida para a formação de uma identidade” (SIQUEIRA, 2019). Por isso, sua importância reside na proposta de valorização do espaço, história e sociedade local, e não em propostas de segregação.
Nesse universo teórico, que se dilata a cada novo tema pesquisado, é exposta a riqueza de vivências, de saberes, e de experiências da sociedade. Ao lado da ampliação dos recortes possíveis à história e geografia, também se amplia o número de agentes históricos, os atores sociais, construtores do espaço social que, através de um recorte “local”, revelam as tendências e forças específicas, peculiares ao local, que perdem sua nitidez em macro abordagens. São as abordagens locais que revelam as cores do espaço regional.
Do menor ao maior recorte espaço-temporal, diferentes graus de relações se revelam. Indo da micro à macro história; ou indo do espaço local ao global, são revelados elementos e tendências interconectados, mas que possuem suas particularidades em cada nível do espaço e do tempo. São estas “as abordagens e as diferentes perspectivas historiográficas [que] permitem reconstruir o passado local de forma nova [...]” (CORREA, 2002, p. 28), e, permitem também, fortalecer as comunidades. Conforme Siqueira (2019), “a História Local é importante, porque o local precisa estar fortalecido para contribuir no desenvolvimento da região, e para que cada local consiga preservar suas particularidades sem ser esmagado e sobreposto por outros locais, ou pela região maior.”.
Nessa perspectiva, a sociedade local se faz singular. Quando cotejada com outras sociedades e regiões, apresenta as suas situações e os seus sujeitos históricos, uma vez que, no interior de seu perímetro agem diferentes atores sociais, que pelo seu trabalho e suas relações, constroem o espaço cultural e alteram o espaço natural.
A geografia e a história local na escola
A legislação educacional brasileira atual redimensionou o ser e a sociedade. A geografia e a história local, enquanto conteúdo articulado no currículo escolar através da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB – 1996) ampliou a percepção dos alunos sobre si e sobre sua própria localidade, ao recepcionar a região. O texto legal determina que o currículo escolar da:
Educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos. (Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 – LDB).
Este dispositivo apresenta três dimensões especificas: o espaço regional, o espaço local (“basicamente, o que difere a história regional, da história local é o recorte geográfico.”) (SIQUEIRA, 2019), e o próprio educando. Cada uma destas dimensões possuem caracteres peculiares que devem ser levados em consideração na formação plena dos educandos. É sem dúvida uma forma de valorizar e promover as comunidades locais frentes às globais.
A compreensão do espaço local através da histórica local congrega diferentes significados aos processos educacionais. De certo modo, o estudo do local permite o estabelecimento de relações afetivas com esta dimensão do espaço, bem como “sua apropriação simbólica”, como espaço de pertencimento individual/coletivo. Já em seu sentido pedagógico “o estudo do município [...] [oportuniza] a passagem do concreto (por si só fragmentado) para o abstrato, que, ao pressupor maior grau de generalização possibilita avançar na compreensão da globalidade.” (CALLAI, 1988, p. 09). Esse processo permite ao educando, perceber que existem diferentes dimensões em uma mesma realidade: o micro (local), o regional, o macro (nacional/mundial), cada qual com suas peculiaridades e semelhanças.
A história local, quando abordada, não sugere o descolamento do local, de seu espaço e de sua temporalidade global. Sugere sim, uma perspectiva sustentada na “[...] experiência dos alunos para desenvolver noções e conceitos universais [...] [valorizando o espaço] por ser um meio próximo no qual esta inserido [...]” (CALLAI e ZARTH, 1988, p. 12, 17), e sobre o qual age e intervém de forma imediata, seja de modo consciente, ou não. Nesta perspectiva, o estudo da história local e do município, por exemplo, é marcado por um sentido político, que se expressa nas diversas formas pelas quais, a comunidade se apropria do espaço e interage entre si, e com outras comunidades, construindo identidades e sua própria história.
REFERÊNCIAS:
SIQUEIRA. Bianca Tamara de. A história local na construção de identidades. ANPUH – Brasil – 30º Simpósio Nacional de História – Recife, 2019. Disponível em: https://www.snh2019.anpuh.org/resources/anais/8/1564705626_ARQUIVO_AHISTORIALOCALNACONSTRUCAODEIDENTIDADES.pdf. Acesso em 02 de set. de 2020.
BIOTO. Benedito Marcos. O estudo da história regional e da história local nas universidades. Revista Científica UNAR (ISSN 1982-4920), Araras (SP), v.15, n.2, p.155-169, 2017. Disponível em:
http://revistaunar.com.br/cientifica/documentos/vol15_n2_2017/11_O_ESTUDO_DA_HIST%C3%93RIA_REGIONAL.pdf. Acesso em 01 de set. de 2020.
CALLAI, Helena C.; ZHART, Paulo Afonso. O estudo do município e o ensino de história e geografia. – Ijuí: UNIJUÍ Ed., 1988.
ARDENGHI, Lurdes Grolli. Caboclos, Ervateiros e Coronéis: luta e resistência no norte do Rio Grande do Sul. Passo Fundo: UPF, 2003.
CALLAI, Jaeme Luiz. Apresentação in: CALLAI, Helena C.; ZHART, Paulo Afonso. O estudo do município e o ensino de história e geografia. – Ijuí: UNIJUÍ Ed., 1988.
CORREA, Silvio Marcus de Souza. História local e seu devir historiográfico. Revista de História da Universidade de Caxias do Sul. Métis: História e Cultura. Vol. 1, nº 2 (2002). Disponível em:< http://www.ucs.br/ etc/revistas/index.php/metis/article/view/1084/734>. Acesso em 05 de ago. de 2015.
PLANALTO. LEI de Diretrizes e Bases da Educação Nacional Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L9394.htm. Acesso em 01 de ago. de 2020.
SANTOS, Milton. Sociedade e espaço: a formação social como teoria e método. Espaço e Sociedade. Petrópolis: Vozes, 1982.